Hoje celebra-se 50 do lançamento do oitavo disco dos Beatles – Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.
Todos os epítetos já foram dados a este disco – o mais importante disco dos Beatles, o melhor álbum pop da história, o divisor de águas, aquele que revolucionou a forma de gravar, e por aí vai.
Não dá ficar indiferente a esse álbum, que varreu o que se conhecia e trouxe um mundo completamente diferente do que já havia sido feito na música popular. Tudo nesse disco era inesperado:
- A capa dupla com letras impressas e a montagem com 57 personagens de todas as épocas e lugares (a minha edição ainda vinha com um “kit Sargento Pimenta” para recortar e se fantasiar)
(fotografando a capa de Sgt. Pepper’s)
- Os efeitos sonoros como a intervenção do público na faixa “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, o tropel de animais em “Good Morning”, o apito para cachorro que fecha o álbum
- A criação de personagens como o próprio Sargento Pimenta e Billy Shears
- As mudanças de clima em praticamente todas as músicas – do rock, ao vaudeville, à música indiana e tudo de volta
- O uso, no limite, da finita tecnologia de gravação da época – uma mesa de gravação de apenas 04 canais – e a invenção de mais outros inúmeros recursos – como um sampler primordial – além do uso de instrumentos inovadores, como o “mellotron”.
Mas, o mais importante – representou musical e artisticamente a geração que buscava uma saída para as guerras nas flores e iniciava o que seria chamado de contracultura, além de criar uma ponte entre a cultura pop e o que se considerava arte.
Em agosto de 1966 os Beatles encerravam sua terceira turnê americana e desistiram de fazer shows por conta da histeria coletiva que os acompanhava. Nas próprias palavras deles, já não era mais possível tocar ao vivo porque a platéia fazia tanto barulho que eles não se ouviam mais. A música tinha perdido para a imagem.
(nessa foto, os Fab Four tentando tocar totalmente isolados do público e a polícia tendo que dar conta das pessoas invadindo o gramado)
Assim, eles resolveram parar e encarar uma mudança, não só visual – John Lennon passou a assumir seus óculos, por exemplo – como musical.
A gravação durou cinco meses – uma eternidade para o padrão dos Beatles, que lançaram em média um álbum novo a cada 07 meses durante 08 anos, capacidade produtiva nunca mais alcançada.
Em novembro de 1996, eles se trancaram nos estúdios da Abbey Road para fazer todo o tipo de experiência musical em um clima de completa liberdade artística. Sobre o tempo que levaram para gravar, a imprensa já dava sinais da conhecida maledicência, dizendo que os Beatles estavam demorando para lançar algo novo e que estavam perdendo sua criatividade.
Mais uma curiosidade sobre a criatividade dos rapazes de Liverpool – as famosíssimas músicas “Penny Lane” e “Strawberry Fields Forever”, foram compostas antes e começaram a dar a atmosfera sobre o que viria a seguir, mas não entraram em nenhum álbum dos Beatles, sendo lançadas como singles no início de 1967.
A ideia de uma banda liderada por um tal de Sargento Pimenta partiu de Paul McCartney. A ideia deles pertencerem a uma outra banda lhes daria liberdade para fazer outra coisa. Eles já haviam testado algumas inovações nas gravações do álbum anterior “Revolver” e também estavam sendo influenciados por outros álbuns que começavam a derrubar algumas convenções da indústria, como “Pet Sounds” dos Beach Boys e “Freak Out!” de Frank Zappa, ambos de 1966.
Essa época também marca o início da dominância criativa de Paul McCartney sobre a de Lennon o que, no fim, acabou levando ao desgaste e à separação da banda. Durante as gravações de Sgt. Peppers, George Harrison ganhou outro destaque, tocando instrumentos inusitados, como cítara e tambura em várias faixas, além de ter contribuído com a lindíssima “Within You Without You”, que contou com uma orquestra indiana. Ringo Starr, por sua vez, morreu de tédio e, das gravações só se lembra de ter aprendido a jogar xadrez.
A figura do produtor George Martin, falecido no ano passado, é tão ou quase mais importante que a dos Fab Four. Ele é considerado quase unanimemente o quinto Beatle, que pilotava equipamentos de gravação, mudava andamentos e tons de músicas, criava arranjos e linhas melódicas e até tocava instrumentos. Em suma, foi o cara que transformou as ideias de quatro moleques brilhantes em realidade musical.
(George Martin, Lennon, McCartney e Ringo)
O disco foi recebido com estupor e passou 27 semanas no topo das paradas inglesas. Como disse a revista Rolling Stone – “… o mais perto que a civilização ocidental chegou perto da união completa foi na semana que Sgt. Pepper’s foi lançado. Todas as rádios tocavam o disco. Todos ouviam as suas músicas.”
Há muito, muito mesmo, o que se escrever e falar sobre o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Para quem quiser saber mais, eu sugiro o livro escrito pelo próprio George Martin em 1995 chamado “Paz, Amor e Sgt. Pepper”, à venda nas melhores livrarias!
Mas melhor do que ler sobre o disco, é ouvi-lo. Vamos saborear as músicas sabendo um pouco mais sobre cada faixa:
LADO A
1) Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band
A faixa começa com um burburinho de uma sala de espetáculos, com afinação de alguns instrumentos. E, sem nenhum aviso, a banda ataca com um rock forte, com guitarras distorcidas e a voz de Paul num registro forte e alto. Após um interlúdio orquestral com direito a intervenção da plateia, a música muda de andamento e entra a parte de Lennon. A típica e eficientíssima combinação de Lennon e McCartney usada tantas vezes e nunca decepcionando. Nos últimos versos Paul apresenta “Billy Shears” e a música já se funde com…
2) With a Little Help From My Friends
Essa faixa foi uma colaboração Lennon/McCartney que acertou na mosca – uma melodia simples, elegante e eficiente feita especialmente para que Ringo Star cantasse na pele do alter ego Billy Shears. E Ringo, incentivado por Paul fez bonito, inclusive atingindo a nota alta no final a despeito de sua falta de autoconfiança como cantor. Destaque vale para a linha de baixo de Paul, que sozinha já seria uma outra belíssima canção. E uma curiosidade – a frase “I get high with a little help from my friends” (eu fico alto com uma ajudinha dos amigos) foi encarada à época como uma das várias referências ao uso de drogas.
3) Lucy In The Sky With Diamonds
Com uma letra assumidamente psicodélica e uma referência (não intencional disseram os Beatles) ao ácido lisérgico, essa faixa começa com uma melodia linda e simplíssima tocada num órgão Lowry, outra invencionice trazida para o estúdio para conseguir compor o timbre ideal. O vocal de John foi alterado para soar mais agudo e George Harrison tocou tambura. Uma faixa simples, brilhante e uma das que os Beatles gravaram mais rápido.
4) Getting Better
Faixa 100% de Paul, um rock direto, com guitarras em staccato fazendo um riff rítmico inigualável. George Martin tocou uma pianette e as cordas de um piano com um taco de críquete. Mais uma vez a intervenção de John no trabalho de Paul vem para complementar o refrão com um pouco do seu humor ácido – Paul diz “I have to admit, it’s getting better, a little better all the time” (eu tenho que admitir que está melhorar um pouquinho melhor o tempo todo) e Lennon responde “it can’t get any worse” (não dá pra piorar).
5) Fixing a Hole
Outra faixa de Paul, econômica e eficiente, com ele tocando uma bela linha de baixo e o cravo. Uma música criada no piano e para ser tocada no teclado. Harrison encaixa um solo perfeito sobre a base de McCartney. Gravada praticamente em um dia.
6) She’s Leaving Home
Mais uma faixa de Paul McCartney com uma letra que fala sobre a diferença entre gerações e a busca de se fazer valer por conta própria longe das convenções. A voz de Paul está sobre uma orquestra de cordas com uma harpa. Para tristeza e estranhamento de George Martin, esse arranjo excepcionalmente não foi feito por ele. A música pesa um pouco na pieguice mas é um linda faixa. No refrão a voz de Lennon aparece numa tessitura mais grave fazendo o papel dos pais da moça fujona.
7) Being For The Benefit Of Mr. Kite
Lennon se inspirou num cartaz de uma apresentação de circo para compor essa estranha e divertida música. Nessa faixa muitos recursos foram usados, inclusive um loop feito com uma colagem de trechos de gravação de órgãos de tubo. Lennon e George tocam dois órgãos diferentes nessa faixa dando uma atmosfera de parquinho de diversão.
LADO B
1) Within You Without You
Essa faixa de George Harrison é o que mais de diferente os Beatles fizeram em toda sua carreira. Antes de iniciar a gravação de Sgt. Pepper’s, ele passou uma temporada na Índia, imerso na meditação transcendental com o guru Maharishi e, de quebra, aprendendo a tocar cítara com Ravi Shankar. Harrison tocou cítara e trouxe músicos indianos para fazer essa delicada faixa com cordas arranjadas por George Martin.
2) When I’m Sixty-Four
Paul compôs essa música tendo seu pai – que já havia tocado em bandas de baile e acabara de fazer 64 anos – como referência. George Martin, para acentuar a ironia da letra, criou um clima de vaudeville que Paul amava (e que Lennon detestava) usando três clarinetas. Outra música 100% de Paul.
3) Lovely Rita
A música sobre a moça que olha os parquímetros e usa um uniforme que a faz parecer militar também é de Paul. Nessa faixa os Beatles tocam como uma banda ao vivo, com George Harrison no violão e slide guitar e George Martin tocando o solo de piano que Paul não conseguiu fazer. O final da música foi construído com barulhos que os rapazes fizeram quando brincaram com os equipamentos de eco.
4) Good Morning Good Morning
Lennon tinha uma habilidade especial de tirar referências da sua vida e transformar em música. Essa faixa foi inspirada num comercial de cereais da Kellogg’s e traz uma letra levemente ácida sobre as frustrações na rotina da sua vida pessoal. É um tremendo rock com um forte arranjo de metais. Mas o divertido está no final, com os animais aparecendo, começando de pintinhos e chegando num leão, como se o que viesse pudesse comer o animal anterior.
(não achei um vídeo com a música… mas aí vai a faixa no Spotify. Desculpem a nossa falha!)
5) Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise)
A banda do Sargento Pimenta que apresenta o disco no início reaparece para fazer o fechamento do álbum. A música se repete, mais rock’n’roll, mais curta e mais rápida.
6) A Day In The Life
O disco fecha com uma canção de Lennon, que escreve uma letra primorosa, falando do dia-a-dia inglês como se lesse em um jornal. Ele fala de um filme, de um membro do parlamento que aparentemente não arrancou com o carro no sinal verde porque estava doido de maconha e de se chegar atrasado ao trabalho. De novo a dupla Lennon e McCartney funcionando como um relógio. Depois da sequência de piano e violão de abertura com a voz de Lennon num eco absurdo, Paul entra martelando o piano e mudando totalmente o andamento da canção. Entre as partes e no final, acontecem as duas intervenções da orquestra, tocando ao vivo sem partitura com a intenção de produzir o som de um apocalipse iminente. E o final, uma nota longa pesada e poderosa que vai sumindo e fechando o disco e largando aquela vontade de ouvir de novo.
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